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O Brasil deve ou não adotar novas regras para enfrentar a crise econômica?

Cássio Cavalli
jun. 10, 2020

O Brasil deve ou não adotar novas regras para enfrentar a crise econômica?

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Por Cássio Cavalli. 
Professor da FGV Direito SP. Advogado, parecerista e árbitro.

A crise econômica desencadeada pelo Covid-19 suscitou um debate que polarizou as opiniões dos especialistas: de um lado, situam-se aqueles que entendem que se deve adotar novas medidas para lidar com a crise, de outro lado, estão aqueles que defendem que a adoção de medidas novas pode ser mais prejudicial do que enfrentar o problema com as ferramentas legais que já existem.
Neste artigo, eu apresento argumentos favoráveis à adoção de novas medidas legislativas, mas busco tempera-las com argumentos sustentados por aqueles que defendem a não adoção de novas regras para lidar com a crise.
É consabido que diversas empresas passam por grave crise financeira decorrente da interrupção de cadeias de suprimento e da redução abrupta de demanda. O faturamento de muitas empresas sofreu uma acentuada redução, sem que, no entanto, as suas obrigações fossem suspensas. Há um monumental descompasso entre o tempo econômico e o tempo financeiro, conforme a síntese de Lawrence Summers descrita pelo site da Bloomberg: “o tempo econômico parou por causa da pandemia, mas o relógio financeiro continuou a girar. Pagamentos de juros, aluguéis e outras obrigações ainda se vencem, mas o dinheiro para arcar com eles secou.” O resultado desse descompasso é a crise empresarial de proporções épicas que estamos para enfrentar. 
Para algumas empresas, o problema será exclusivamente financeiro. Tão-logo vencida a pandemia, cadeias de suprimento tornarão a funcionar e a demanda retornará. Para estas empresas, é fundamental que sejam adotadas medidas de alívio financeiro que possibilitem que as suas agendas de pagamento sejam sincronizadas com o tempo econômico de seus faturamentos. Ninguém espera que empresas sejam fechadas pelo fato de que a terra parou de uma só vez. No Dia da Marmota não se vencem boletos dos meses seguintes. 
Além da crise financeira, outras empresas poderão enfrentar problema mais grave após vencermos a pandemia, pois a demanda por certos produtos ou serviços pode não se reestabelecer, dando origem a crises econômicas. Nesse caso, muitas empresas não terão como pagar suas dívidas e terão que fechar suas portas. Os impactos dessas falências serão sentidos por toda a economia. 
Diferentemente do que se passou em muitas crises anteriores, a atual crise das empresas é inequivocamente uma crise sistêmica. A interrupção do faturamento de uma empresa faz com que esta empresa não produza, não tenha faturamento, não consiga honrar compromissos e não demande insumos de outra empresa, a qual, por sua vez, terá redução de faturamento e impactará noutra empresa, e assim sucessivamente. Mais falências também significa mais pessoas desempregadas e sem renda que não poderão demandar produtos de outras empresas, o que realimentará a crise sistêmica. Corremos o risco de viver mais uma década perdida.
Por tratar-se de crise sistêmica, quanto menos eficazes forem as medidas para enfrentar a crise financeira, mais empresas não conseguirão retomar a atividade, com impacto negativo tanto na demanda por insumos de outras empresas quanto em cadeias de suprimento, amplificando a crise econômica de diversas empresas que terão que fechar as portas.
Daí a importância de serem rapidamente implementadas medidas legislativas eficazes para conter a crise antes que ela se espalhe. Idealmente, estas medidas devem viabilizar a superação da crise de cadeias de produção interconectadas. Portanto, são medidas diferentes daquelas já existentes na legislação que trata da crise de empresas isoladas.
As medidas para enfrentar a crise sistêmica devem ser desenhadas para enfrentar os problemas específicos da crise atual, que são basicamente relacionados à liquidez das empresas, seja por ausência de recursos, seja por excesso de obrigações. Portanto, as medidas que proponho neste artigo são medidas de (i) alívio financeiro, que prorroguem certas agendas de pagamento para sincronizar o relógio do tempo financeiro ao relógio do tempo econômico; e (ii) medidas de indução de liquidez, que permitam a pessoas e empresas demandar serviços e produtos.
Em um mundo ideal, não haveria dificuldades em se implementar medidas coordenadas e perfeitamente sincronizadas de alívio financeiro, nem haveria limites a que o Estado injetasse recursos na economia. (Este último aspecto não será abordado neste artigo, por escapar à minha área de especialidade.) Porém, no mundo real, as incertezas dificultam muito que se desenhe medidas de alívio financeiro perfeitas, bem como o Estado possui limites para injetar recursos na economia.
Esta ponderação suscita uma relevante questão: Quais interesses promover, os daqueles afetados pela crise ou os daqueles pouco afetados pela crise? Salvar os feridos de guerra e correr o risco de contaminar os saudáveis, ou proteger os que ainda têm saúde deixando desassistidos os feridos? 
A pergunta, assim impostada, induz a respostas polarizadas. Porém, devemos construir os critérios para superar os impasses que levam a respostas extremadas. Assim, em primeiro lugar, deve-se ter em mente que crise da pandemia não é uma crise qualquer, mas é uma crise sistêmica que afeta diversos elos da cadeia econômica que, se não forem protegidos, afetarão os demais elos, que se romperão, com impactos negativos para a economia como um todo e para a sociedade. Por este motivo, além de se identificar quais elos receberão qual tipo de proteção, cumpre analisar as externalidades que as formas de proteção eleitas (ou ausência delas) causarão noutros elos da cadeia econômica. Em crises sistêmicas, as externalidades devem ser levadas a sério. (E, conforme a teoria que estou desenvolvendo em livro ainda inacabado sobre direito concursal, se levarmos as externalidades a sério, muito do conhecimento ortodoxo sobre insolvência se revelará insuficiente para lidar com crises. A literatura global dominante sobre insolvência não dedica atenção a externalidades, quando muito o faz incidental e residualmente.)
Essa análise possibilita que sejam adotadas medidas com certas características e que sejam direcionadas a determinadas relações ou elos da cadeia econômica. Contra esse argumento, afirmou-se que não há análises concretas dos impactos das medidas que possam ser propostas. A este argumento pode-se contra-argumentar que também não há análises concretas dos impactos decorrentes da ausência de adoção de medidas concretas. Portanto, tanto o argumento quanto o contra-argumento são insatisfatórios e apenas demonstram que é imperativo que façamos urgentemente as análises necessárias para uma adequada tomada de decisão. E esta decisão não deve ser política, orientada a satisfazer este ou aquele grupo de interesse com maior força no jogo político. Há critérios técnicos que podem qualificar o debate e conduzir a melhores desenhos institucionais.
Outros, no entanto, argumentaram que a análise deveria envolver a compreensão empírica (a) da situação atual e (b) dos impactos de medidas a serem eventualmente adotadas. Este último argumento (b) não pode ser acolhido, pois envolve análise contrafactual. Porém, o argumento que reclama uma descrição empírica do estado de coisas atual (sobre quantas pessoas, empresas, setores, tipos de contrato, valores etc.) está correto, pois esta descrição é fundamental para uma melhor tomada de decisão. 
No entanto, para a realização de qualquer análise não basta o dado empírico. Há que se adotar um modelo teórico que empreste sentido ao dado empírico e que possibilite a realização da análise. Aqui, a imensa complexidade da realidade a ser descrita já sugere que o modelo teórico que venha a ser adotado incorpore a incerteza como uma de suas pressuposições centrais.
É a incerteza, aliás, que caracteriza situações de crise e torna difícil o seu enfrentamento. Essa incerteza é decorrente da incompletude dos contratos, isto é, do fato de os contratos não conterem previsões sobre todos os estados de coisas possíveis, como por exemplo o que ocorre caso a terra pare por causa de uma pandemia sem precedentes. (Aqui, faço a conexão entre a incerteza e da incompletude com a crise da empresa; conexão esta que não é feita pela literatura dominante de insolvência, e que é referida residualmente por autores que não integram a literatura mainstream.) 
O direito concursal, com suas regras sobre recuperação judicial e falência, visa a completar os contratos em épocas de crise. Contudo, as próprias leis também são incompletas e não antecipam todos as contingências possíveis. A nossa Lei 11.101/2005 e suas propostas de reforma, por exemplo, tratam da crise de empresas isoladas, mas silenciam completamente sobre crises empresariais sistêmicas, como a que estamos vivendo agora.
A constatação de que há incerteza sobre o alcance e extensão da crise atual e também sobre as formas de enfrentamento da crise não pode ser justificativa para desqualificar qualquer esforço de análise. Pelo contrário, há formas de lidar com a incerteza. 
Se ninguém sabe ao certo o que está acontecendo e o que fazer, deve-se adotar um mecanismo centralizado de coordenação da atuação dos afetados pela crise. Este é um dos fundamentos para a existência de empresas e também é um dos fundamentos para a existência de leis concursais. (Notem que até hoje ainda estão por serem construídas as pontes teóricas que eu proponho aqui entre o fundamento de Coase para a existência das empresas e o fundamento para a existência das leis concursais. Eu estou desenvolvendo estas relações em um livro ainda inacabado sobre a teoria geral do direito concursal.)
A constatação da incerteza também é fundamento para impedir ações descoordenadas por diferentes indivíduos, com base em seus direitos relativos. Isto se faz por meio da imposição da suspensão de exercício de determinados direitos. Essa é uma das características de instituições de direito concursal que lidam com crise empresarial isolada (como as normas da Lei 11.101/2005) e também com potenciais crises sistêmicas (como as normas sobre resolução de insolvência bancária). No direito marítimo, por exemplo, quando uma embarcação enfrenta grave tempestade em alto mar, compete ao capitão decidir quais mercadorias jogar ao mar para aliviar a carga, e as perdas são suportadas proporcionalmente pelos proprietários das cargas transportadas. Isto é, há uma autoridade centralizada que suspende o exercício de certos direitos e impõe a adoção de medidas. 
A suspensão de determinados direitos pode ser imposta por (i) medida provisória ou definitiva; que (ii) pode ser direcionada a determinados setores da economia ou a determinados indivíduos; e (iii) afetar certas posições jurídicas discriminadas (como as posições de crédito pré-pedido, em casos de recuperação judicial) ou afetar indiscriminadamente posições jurídicas (como ocorre em moratórias gerais); (iv) em procedimento individual e contingente ou por medida geral e automática decorrente de lei ou decreto de autoridade central.
No caso da atual crise, ante a incerteza sobre o alcance da crise, recomenda-se ganhar tempo impondo-se medidas de alívio financeiro temporárias, para que o mercado tenha melhores condições de compreender como será o mundo econômico-financeiro após a pandemia do Covid-19. O alívio financeiro pode durar até o fim das medidas de isolamento, quando supostamente o ponteiro do relógio econômico da demanda voltará a girar.
Além disso, sabe-se que determinados setores e empresas de maiores dimensões foram menos afetados pela crise (ou que possuem maior fôlego de caixa para sobreviver à pandemia). Por isso, as medidas de alívio financeiro, idealmente, devem ser restritas a setores mais afetados pela crise, bem como a agentes econômicos de menores dimensões (como MEs, EPPs, MEIs, autônomos e consumidores).  
Ademais, ainda por causa da incerteza, as medidas de alívio financeiro devem priorizar obrigações que representam custo fixo da empresa ou agente econômico, como obrigação de pagar aluguel. Alguns podem criticar esta proposta, pois a suspensão de pagamentos em certos elos da cadeia econômica privaria outros elos de receber pagamentos necessários para a sua operação ou subsistência. Daí porque melhor seria não impor suspensão alguma. Esta crítica tem muito daquela aversão, registrada por Comparato em célebre obra, contra a insolvência, que muitos gostariam de abolir proibindo-se, por Decreto, que as empresas fiquem insolventes. No entanto, mesmo que se proíba por lei empresas de inadimplirem suas obrigações, haverá inadimplementos caso as empresas não tenham recursos disponíveis. Do mesmo modo, a não adoção de regras coordenadas de alívio financeiro não fará com que as empresas façam os pagamentos das obrigações que se vencerem. Pelo contrário, aqueles agentes econômicos afetados pelo descompasso entre o tempo financeiro e o tempo econômico não conseguirão pagar as obrigações vencidas e buscarão proteção em equivalentes funcionais a medidas de alívio financeiro. Isto é, na ausência de um mecanismo geral e coordenado de alívio financeiro, muitos devedores, desprovidos de recursos para honrar obrigações na medida em que forem vencendo, distribuirão ações judiciais para obter provimentos de prorrogação do prazo de pagamento de dívidas. 
Essas ações judiciais serão propostas por milhões de pessoas e empresas, e muitas vezes será uma ação judicial para cada obrigação que se pretende prorrogar, o que multiplicará acentuadamente o número de processos judiciais. Da mesma forma, serão milhares de ações de recuperação judicial, com as suas milhares ou milhões de ações incidentais, que serão ajuizadas. Como consequência, a ausência de adoção de regras coordenadas de alívio financeiro (a) não assegurará que credores recebam pagamentos; (b) fará com que credores tenham que gastar recursos para promover a cobrança de seus créditos; e (c) sobrecarregará significativamente o Poder Judiciário, que poderá levar anos ou décadas para normalizar o volume de processos. 
O resultado será econômica e socialmente indesejável: credores sem receber pagamentos e tendo de incorrer em custos para tentar cobrar seus créditos; devedores tendo que despender recursos para litigar, ao invés de investirem na retomada econômica; e o Poder Judiciário irremediavelmente congestionado.
Por isso, melhor que as medidas de alívio financeiro temporário, circunscritas a certos tipos de devedores (sobretudo os de menor porte) e a determinadas obrigações (em especial as que constituem custos fixos), sejam também ser medidas gerais decorrentes de lei. 
Tenho certeza de que o debate qualificado entre diversos especialistas é capaz de superar as divergências para desenhar as medidas de alívio financeiro capazes proteger na máxima medida os agentes econômicos afetados pela crise, causando o mínimo possível de impactos em agentes econômicos menos afetados pela crise.
Todos nutrimos o objetivo comum de enfrentar a crise da forma mais eficaz possível. Se não adotarmos rapidamente medidas de alívio financeiro, serão adotados em massa equivalentes funcionais menos eficientes, mais custosos e que não são capazes de conter a propagação da crise sistêmica sobre a economia e sobre a infraestrutura do Poder Judiciário. Neste caso, perderemos todos nós, nossos filhos e nossos netos.

Agenda Recuperacional

Por Cássio Cavalli 28 set., 2022
Assine a newsletter Agenda Recuperacional no site www.AgendaRecuperacional.com.br e no Linkedin para receber os próximos artigos do Prof. Cássio Cavalli. Por Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado, parecerista e árbitro. As interações entre a disciplina da execução fiscal e o processo recuperacional seguem suscitando relevantes indagações mesmo após a reforma da Lei 11.101/2005 levada a cabo pela Lei 14.112/2020. A questão assenta sobre a tensão que há entre a possibilidade de continuação das execuções fiscais contra empresa em recuperação judicial, de um lado, e o risco que a continuação das execuções fiscais acarreta para a preservação da empresa, de outro. Em síntese, a questão submetida ao Judiciário é: como conciliar a norma contida no art. 187 do CTN, que isenta o crédito tributário de participar da recuperação judicial, ao mesmo tempo em que se promove a preservação da empresa pelo processo recuperacional? Variações desta indagação foram inúmeras vezes devolvidas ao STJ, que, de modo expedito e consistente, constituiu um seguro e sólido corpo jurisprudencial a orientar a atuação das Cortes brasileiras. Seguindo a trilha aberta pelos Tribunais, o legislador detalhou a questão no § 7º-B do art. 6º da Lei 11.101/2005, ao dispor que a execução fiscal não se suspende pelo deferimento da recuperação judicial, mas sua continuação não pode recair sobre “bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial”. Deste modo, buscou contemplar a um só tempo a tutela executiva do crédito tributário e o objetivo normativo de preservar empresas em recuperação judicial. Mantendo a presteza e a consistência na prestação jurisdicional, logo após a promulgação da Lei 14.112/2020, a Segunda Seção do STJ, por unanimidade, em aresto da segura relatoria do Min. Marco Aurélio Belizze, [1] firmou os claros critérios orientadores da interpretação do § 7º-B do art. 6º da Lei 11.101/2005 relativos à caracterização de conflito de competência entre o juízo recuperacional e o juízo da execução fiscal. Com efeito, o deferimento do processamento da recuperação judicial não suspende, per se, a execução fiscal. Porém, caso a execução fiscal coloque em risco a preservação da empresa, poderá haver a suspensão da prática de atos na execução fiscal. Esta norma nada mais é do que concretização do conteúdo normativo compartilhado pelos princípios mais gerais da preservação da empresa (art. 47 da LRF) e da menor onerosidade da execução (art. 805 do CPC, aplicável à execução fiscal pelo art. 1º da Lei 6.830/1980). [2] A execução fiscal não pode recair de modo mais oneroso sobre o patrimônio da empresa e colocar em risco a sua preservação. Se isto ocorrer e a empresa estiver em recuperação judicial, competirá ao juízo recuperacional decidir sobre a alocação de bens da empresa recuperanda (conforme a Súmula 480 do STJ). Daí, aliás, decorre a possibilidade de haver conflito de competência entre o juízo recuperacional e o juízo da execução fiscal. Conquanto esta seja a hipótese de suspensão de execuções fiscais contra empresa em recuperação judicial que foi sucessivamente devolvida à apreciação de nossas Cortes, existem, no ordenamento jurídico brasileiro, outros fundamentos para a suspensão das execuções fiscais que não decorrem do princípio da preservação da empresa. São hipóteses fundadas em critérios distributivos, que versam sobre preferências creditórias. Estas normas orientam a prestação jurisdicional da execução fiscal em uma série de situações já cristalizadas pela jurisprudência, mas ainda estão por ser devolvidas aos nossos tribunais em matéria de recuperação judicial. A primeira hipótese normativa encontra-se positivada no art. 186, caput, do CTN, que atribui ao crédito trabalhista preferência creditória sobre qualquer outro crédito, inclusive o crédito tributário. A preferência do crédito trabalhista é norma de direito material com conteúdo publicístico, consoante a expressão de Pontes de Miranda. [3] A preferência situa-se na pretensão de direito material e orienta a prestação jurisdicional executiva do Estado. Nesse sentido são os julgados de nossa Corte Superior, conforme se pode ver em recentes arestos relatados pelo Min. Og Fernandes [4] e pelo Min. Francisco Falcão. [5] O reconhecimento da preferência pressupõe que mais de um credor pretenda fazer recair a pretensão executiva sobre o patrimônio ou mesmo elemento do patrimônio do mesmo devedor, [6] de modo que se tenha que reconhecer a preferência da pretensão de um credor e a correspondente subordinação da pretensão de outro credor. Neste sentido, o crédito trabalhista prefere a qualquer outro, inclusive o crédito tributário, o crédito de obrigação propter rem e o direito de credor não trabalhista de adjudicar bem penhorado. [7] Ademais, a preferência do crédito trabalhista é assegurada mesmo que o credor trabalhista ainda não tenha ajuizado processo de execução, conforme criteriosos acórdãos de relatoria do Min. Marco Buzzi, [8] do Min. Luis Felipe Salomão [9] e da Min. Nancy Andrighi. [10] Em razão de a preferência decorrer de norma de direito material, o credor trabalhista pode sobrestar a execução fiscal, de modo a assegurar que o crédito tributário não seja satisfeito antes do crédito trabalhista. Por isso a preferência pode ser invocada independentemente de haver execução trabalhista, pois basta o crédito, embora a preferência também seja tutelada caso já tenha sido aparelhada a execução trabalhista. Nesta última hipótese, compete ao juízo trabalhista a execução preferencial do crédito trabalhista. Pelo mesmíssimo fundamento, a preferência igualmente se mantém mesmo em caso de eventual suspensão da execução trabalhista. Aqui, cabe um esclarecimento. A preferência manifesta-se independentemente de o devedor ser solvente ou insolvente. Assim, a preferência se manifesta em concurso especial de credores que penhoram um mesmo bem de devedor solvente (art. 908, § 2º, do CPC c/c art. 186 do CTN). Porém, a preferência tem ainda maior razão de ser em caso de insolvência do devedor, pois, neste caso, violar a ordem de preferência coloca em risco a efetiva satisfação do crédito preferencial. Por isso, em caso de o devedor comum estar em recuperação judicial, não pode o Estado permitir que a execução fiscal prossiga de modo a violar a preferência do crédito trabalhista, mormente pelo fato de que a recuperação judicial suspende a execução trabalhista. Neste caso, a competência para a tutela da satisfação do crédito trabalhista é deslocada para o juízo recuperacional, consoante já decidiu o Tribunal Pleno do STF em recurso com repercussão geral. [11] Com efeito, compete ao juízo recuperacional assegurar a observância da preferência do crédito trabalhista, competência, esta, que se sobrepõe inclusive à do juízo da execução fiscal. De igual modo, não são permitidos outros expedientes que contornem a preferência do crédito trabalhista e satisfaçam preferencialmente o crédito tributário. Por isso mesmo, o parcelamento e a transação fiscais não podem levar à inversão das preferências asseguradas ao crédito trabalhista. Por evidente que nada obsta a que sejam pactuados parcelamentos e transações tributárias; porém, o pagamento do crédito fiscal parcelado não pode ser iniciado antes de ser pago o crédito trabalhista, sob pena de inversão da preferência assegurada pelo art. 186, caput, do CTN. Ademais, a norma do parágrafo único do art. 186 do CTN apenas reforça a norma geral do caput, pois prevê subordinação ainda maior ao crédito tributário em caso de falência. Bem concretamente, o ordenamento jurídico brasileiro não contempla hipótese em que o crédito tributário possa buscar e efetivamente obter preferência de pagamento em relação ao crédito trabalhista. A única hipótese decorre da vontade do credor trabalhista, titular de direito patrimonial disponível. Assim, pode o credor trabalhista optar por não invocar sua preferência em autos de execução fiscal, assim como pode a classe de credores trabalhistas concordar com alteração da preferência prevista em plano de recuperação judicial. Se a classe trabalhista não concordar e rejeitar o plano de recuperação judicial, haverá falência, hipótese em que o crédito tributário se sujeitará a uma subordinação ainda maior, nos termos do art. 186, parágrafo único, do CTN, que corresponde a uma preferência ainda maior do crédito trabalhista, tanto na porção de até 150 salários-mínimos (inciso I do art. 83 da Lei 11.101/2005), quanto no que sobejar e for classificado como quirografário (inciso VI do art. 83 da Lei 11.101/2005), que tem preferência sobre as multas fiscais e administrativas (inciso VII do art. 83 da Lei 11.101/2005). A lição que fica é que normas procedimentais não podem violar a preferência material do crédito trabalhista. As implicações disso são enormes: se o plano de recuperação judicial for aprovado inclusive pela classe dos credores trabalhistas, não se poderá subordinar a efetiva homologação do plano à previa apresentação de certidões de regularidade fiscal da empresa em recuperação. Do contrário, se estará a subordinar a vontade dos credores trabalhistas a ato de credor fiscal, isto é, a vontade de credores preferenciais será subordinada a credores de hierarquia inferior, cujo veto ao plano de recuperação tem por consequência retardar o começo do pagamento do crédito trabalhista preferencial. (Ademais, a exigência de certidão de regularidade fiscal para homologação, atavismo remanescente da legislação tributária da primeira metade do século XX, viola frontalmente o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, pois subordina a prestação jurisdicional recuperacional a um ato administrativo!) Há um outro argumento distributivo igualmente relevante, que conduz à suspensão das execuções fiscais contra a empresa em recuperação judicial: o pacto federativo consagrado no art. 19, III, da Constituição. Este, aliás, é um relevantíssimo dado normativo a orientar a interpretação das relações entre o sistema recuperacional e o sistema de cobrança do crédito tributário. A disciplina de parcelamento e de transação fiscal positivada pela Lei 14.112/2020 alcança apenas o passivo tributário com a União. O parcelamento e a transação fiscal do passivo decorrente de tributos de competência das 27 unidades federativas e dos mais de 5500 Municípios dependem de lei promulgada na esfera de competência dos respectivos entes federados. Com efeito, pode ocorrer de um ente federado não ter disciplinado o parcelamento fiscal ou de não ter ainda concedido parcelamento ao tempo da concessão de parcelamento pela União. Esta preferência é agravada por envolver empresa em recuperação judicial, cujo patrimônio pode não comportar o pagamento integral de todos os credores. Em ambas as hipóteses, o parcelamento com a União pode conduzir a uma preferência da satisfação do crédito tributário da União em detrimento dos créditos tributários detidos por Estados e Municípios. A estes restaria continuar a perseguir a satisfação de seus créditos por meio de execuções fiscais. Porém, em junho de 2021, ao julgar a ADPF 357 pela segura relatoria da Min. Cármen Lúcia, [12] o STF reconheceu a igual hierarquia dos créditos da União, Estados e Municípios, e declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 187 do CTN. Por conseguinte, foi cancelado o verbete da Súm. 563 do STF e indiretamente foi afetada a Súm. 497 do STJ. Este precedente acarreta profundas implicações para o sistema de execução fiscal e também para o sistema recuperacional. Em primeiro lugar, por figurarem em um mesmo nível de preferência, os créditos da União, Estados e Municípios devem ser pagos pro rata, não se admitindo que a União tenha preferência para obter satisfação do seu crédito. No sistema de execuções fiscais, isso significa que Estados e Municípios podem penhorar, no rosto dos autos de execução fiscal federal, para obter a sua parcela proporcional de pagamento. Se a execução fiscal federal estiver suspensa por parcelamento ou transação, idem: os Estados e Municípios podem postular a distribuição pro rata sobre o valor das parcelas devidas à Fazenda Nacional. Do contrário, estar-se-ia a permitir que o parcelamento tributário contornasse o sistema de preferências que impera na execução fiscal por ele suspensa, em flagrante violação do pacto federativo. Com efeito, o inverso também não é permitido pelo mesmo fundamento; isto é, a execução fiscal estadual ou municipal não pode prosseguir de modo a assegurar pagamento preferencial em detrimento da satisfação de crédito da União, cuja exigibilidade está suspensa pelo parcelamento ou transação concedidos. De igual modo, a não concessão de parcelamento ou transação por um ente federado não pode ser causa de não concessão da recuperação judicial, pois nesta hipótese o crédito dos demais entes federados terá seu pagamento subordinado na falência, ainda que estes tenham concedido parcelamento fiscal. Ao fim e ao cabo, parece evidente que o sistema de supremacia do executivo fiscal [13] instituído pelo art. 187 do CTN não condiz com a ordem constitucional brasileira, pois conduz a graves violações ao pacto federativo, que podem ser evitadas pela concentração da atividade executiva em um único juízo, isto é, em um juízo concursal, como o juízo recuperacional. Esta, aliás, é a vocação natural do juízo recuperacional que, por pertencer à Justiça Estadual, pode reunir em concurso pretensões de competência originária da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho. Há também razões de outras ordens, relacionadas à eficiência da administração pública (art. 37 da CF) e à efetividade da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF), que levam à mesma conclusão, mas que, por assentarem em imperativos eficientistas, deixarei para explorá-las noutra oportunidade. Neste artigo, quero apenas sublinhar o papel das preferências creditícias quando da interpretação das normas relativas ao tratamento do crédito tributário contra empresa em recuperação judicial. Para tanto, já contamos com formidável jurisprudência do STJ sobre como se deve assegurar a preferência de pagamento de créditos trabalhistas e do STF acerca da relevância do pacto federativo para a tutela jurisdicional executiva do crédito tributário. Afinal, as preferências creditórias devem ser levadas a sério inclusive com relação a suspensão de execuções tributárias manejadas contra empresas em recuperação judicial. --- [1] STJ, CC 181.190, Segunda Seção, j. 30.11.2021, v.u., rel. Min. Marco Aurélio Belizze. [2] Sobre o compartilhamento de conteúdo normativo entre o princípio da preservação da empresa e o princípio da menor onerosidade da execução, ver CAVALLI, Cássio. O princípio da menor onerosidade e a penhora de faturamento da empresa. Revista dos Tribunais , 101, 926, p. 701-732. 2012. [3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado . t. XXVII. São Paulo: Revista dos Tribunais 2012, § 3.235, p. 221. [4] STJ, AgInt no AREsp 1.748.230, Segunda Turma, j. 19.10.2021, v.u., rel. Min. Og Fernandes (“Esta Corte de Justiça possui o entendimento de que não é possível sobrepor uma preferência de direito processual, crédito tributário, a uma de direito material, crédito trabalhista, em conformidade com a previsão do art. 186 do CTN. 2. Essa preferência independe da data em que registrada a penhora. Assim, é possível ao detentor do crédito trabalhista, na fase de arrematação, havendo créditos a serem adimplidos, postular o reconhecimento do seu direito preferencial sobre o crédito obtido na alienação do bem penhorado.”). [5] STJ, AgInt no REsp 1.746.907, Segunda Turma, j. 24.11.2020, v.u., rel. Min. Francisco Falcão (“Não é possível sobrepor uma preferência de direito processual, crédito tributário, a uma de direito material, crédito trabalhista, em conformidade com a previsão do art. 186 do CTN. IV - A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é pacífica neste sentido, ou seja, de que o crédito da Fazenda Pública leva preferência sobre qualquer outro, exceto os de natureza trabalhista, não se lhe aplicando as regras do artigo 711 do Código de Processo Civil. Precedentes: AgInt no REsp 1328688/PR, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), DJe 27/09/2018; REsp n. 1.278.545/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, DJe 16/11/2016 e AgRg no REsp 1491126/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 19/12/2014.”). [6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado . t. XXVII. São Paulo: Revista dos Tribunais 2012, § 3.235, p. 221. [7] Assim, ver STJ, REsp 1.539.255, Terceira Turma, j. 27.11.2018, v.u., rel. Min. Nancy Andrighi (“Ação de cobrança de despesas condominiais, já em fase de cumprimento de sentença. 2. Ação ajuizada em 08/08/2012. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73. 3. O propósito recursal é definir se há - sobre o produto da arrematação de bem imóvel - preferência de crédito trabalhista ao crédito condominial. 4. Esta Corte entende não ser possível sobrepor uma preferência de direito processual a uma de direito material, preferindo o credor trabalhista aos demais, sobre o crédito obtido na alienação do bem penhorado.”); e STJ, REsp 1.411.969, Terceira Turma, j. 10.12.2013, v.u., rel. Min. Nancy Andrighi (“o direito do exequente de arrematar o bem com seu crédito está condicionado à inexistência de outros credores com preferência de grau mais elevado”). [8] STJ, AgInt no REsp 1.764.630, Quarta Turma, j. 30.08.2021, v.u., rel. Min. Marco Buzzi (“O credor com título de preferência legal pode participar do concurso previsto no art. 711 do CPC/73 - correspondente ao art. 908 do NCPC - para resguardar o seu direito de preferência, mesmo que não tenha promovido a execução do seu crédito. Nessa hipótese, reconhecida a preferência do crédito, o levantamento do valor fica condicionado a posterior ajuizamento de execução.”). [9] STJ, REsp 280.871, Quarta Turma, j. 05.02.2009, v.u., rel. Min. Luis Felipe Salomão (“garante-se o direito de preferência do credor [trabalhista] apenas reservando-lhe o produto da penhora, ou parte deste, levada a efeito em execução [fiscais] de terceiros, condicionando o seu levantamento a execução futura aparelhada pelo próprio credor.”). [10] STJ, REsp 1.219.219, Terceira Turma, j. 17.11.2011, v.u., rel. Min. Nancy Andrighi (“No concurso singular de credores, o crédito tributário prefere a qualquer outro, ressalvados aqueles decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho. 2. O credor com título de preferência legal pode participar do concurso previsto no art. 711 do CPC para resguardar o seu direito de preferência, mesmo que não tenha promovido a execução do seu crédito. Nessa hipótese, reconhecida a preferência do crédito, o levantamento do valor fica condicionado a posterior ajuizamento de execução.”). [11] STF, RE 583.955, Tribunal Pleno, j. 28.05.2009, m.v., rel. Min. Ricardo Lewandowski (a Justiça do Trabalho é competente para apurar o crédito trabalhista contra empresa em recuperação, mas o pagamento do crédito compete à Justiça Estadual, onde tramita a recuperação judicial). Ao recurso conferiu-se repercussão geral em 19.06.2008 (“[o]ferece repercussão geral a questão sobre qual o órgão do Poder Judiciário é competente para decidir a respeito da forma de pagamento dos créditos, incluídos os de natureza trabalhista, previstos no quadro geral de credores de empresa sujeita a plano de recuperação judicial”). [12] STF, ADPF 357, Tribunal Pleno, j. 24.06.2021, m.v., rel. Min. Cármen Lúcia (“A arguição de descumprimento de preceito fundamental viabiliza a análise de constitucionalidade de normas legais pré-constitucionais insuscetíveis de conhecimento em ação direta de inconstitucionalidade. Precedentes. 2. A autonomia dos entes federados e a isonomia que deve prevalecer entre eles, respeitadas as competências estabelecidas pela Constituição, é fundamento da Federação. O federalismo de cooperação e de equilíbrio posto na Constituição da República de 1988 não legitima distinções entre os entes federados por norma infraconstitucional. 3. A definição de hierarquia na cobrança judicial dos créditos da dívida pública da União aos Estados e Distrito Federal e esses aos Municípios descumpre o princípio federativo e contraria o inc. III do art. 19 da Constituição da República de 1988. 4. Cancelamento da Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal editada com base na Emenda Constitucional n. 1/69 à Carta de 1967. 5. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar não recepcionadas pela Constituição da República de 1988 as normas previstas no parágrafo único do art. 187 da Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional) e no parágrafo único do art. 29 da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais).” No voto da relatora, lê-se: “Não verificando no texto constitucional de 1988 fundamento válido para acolher no ordenamento jurídico brasileiro norma infraconstitucional que crie distinções entre os entes federados na cobrança judicial dos créditos tributários e não tributários, tenho como procedente o pedido apresentado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental.”). [13] Tomei a expressão emprestada de BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 1993, p. 607.
Por Cássio Cavalli 08 jul., 2020
Assine a newsletter Agenda Recuperacional no site www.AgendaRecuperacional.com.br e no Linkedin para receber os próximos artigos do Prof. Cássio Cavalli. Por Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado, parecerista e árbitro. A venda de Unidades Produtivas Isoladas (UPI) é a forma de alienação de ativos mais adotada nos casos de recuperação de judicial. A maior adoção desse dispositivo legal como forma de desinvestimento de empresas em recuperação judicial decorre do fato de que a Lei 11.101/05 e a jurisprudência cuidaram de afastar as regras de sucessão em obrigações que foram ampliadas ao longo do século XX fazendo com que ocorresse sucessão em virtualmente qualquer venda de ativos, inclusive isolados. A disciplina da sucessão em obrigações é altamente prejudicial aos interesses da empresa e dos seus credores, pois impede que a empresa possa desinvestir de modo eficiente para obter liquidez ainda a tempo de evitar problemas de caixa. As normas de sucessão, ademais, são indutoras de seleção adversa no mercado de ativos empresariais, uma vez que os potenciais adquirentes de ativos se disponham a pagar apenas valores reduzidos por eles, isso quando se dispõem a adquiri-los, uma vez que desconhecem a extensão das obrigações elas quais podem vir a responder. As regras de sucessão, assim, promovem um resultado indesejado: as empresas, por não conseguirem vender eficientemente seus ativos, acabam condenadas à crise e ao pedido de recuperação judicial, onde poderão vender ativos embalados em UPIs. Ao esterilizar ativos, a UPI afasta a necessidade de se precificar a extensão do risco sucessório e, assim, permite que se obtenha maior valor pelos ativos alienados. Porém, o desinvestimento por meio de venda de UPI contém alguns inconvenientes, dos quais o maior é a demora para a sua implementação. Empresas em crise são melting ice cubes , cujo valor derrete à medida que o tempo passa. Um pedido de recuperação gera impactos reputacionais e, também, pode dificultar a gestão da relação da empresa com diversos stakeholders . Ademais, empresas necessitam de liquidez para fazer frente a despesas operacionais e não podem aguardar até a aprovação e homologação de um plano para poder desinvestir mediante a venda de UPI. Nesses casos, é necessário que a empresa possa desinvestir antecipadamente, já no começo da recuperação judicial. A venda de ativos fora de plano de recuperação judicial pressupõe que a empresa demonstre ao juiz a evidente utilidade na alienação e que obtenha autorização para a venda, conforme o art. 66 da Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial e Falência (LRF). Contudo, a LRF não prevê norma que proteja expressamente o adquirente contra sucessão de obrigações da empresa alienante. A incerteza acerca da sucessão acaba por dificultar o desinvestimento de empresas, em prejuízo de todos os interessados. Daí porque cumpre aos intérpretes aclarar as normas de proteção de adquirentes de ativos de empresas em recuperação judicial. A LRF não tratou de modo sistemático a disciplina da alienação de ativos na recuperação judicial, pois preferiu disciplinar a alienação de ativos na parte relativa à falência, à qual remetem certos dispositivos situados na parte relativa à recuperação judicial. Na falência, o art. 141 da LRF protege expressamente contra a sucessão quem arrematar ativos alienados conjunta ou separadamente em processo de falência. Ou seja, na falência o arrematante de estabelecimento ou de ativos isolados não sucederá nas obrigações do falido. Essa regra foi posta em benefício da massa falida e dos credores, pois possibilita a obtenção de um maior preço pela alienação de ativos. Ao mesmo tempo, quando tratar-se de alienação de ativos operacionais, permite a preservação da utilização produtiva dos bens, antes que se depreciem. A proteção legal é aplicável a todas as modalidades de alienação, incluindo os casos de alienação judicial e as demais modalidades que dependem de autorização do juiz (art. 144 da LRF) ou da assembleia de credores (art. 145 da LRF). Em todos os casos, há ampla possibilidade de controle por parte de todos os interessados, bem como há a necessidade de autorização ou de homologação judicial. Com isso, assegura-se que a alienação de ativos será realizada para obter o maior proveito para a massa falida. Parece-me que referida disciplina legal se aplica aos processos de recuperação judicial, cuja finalidade mediata consiste em preservar a empresa. Por isso, as regras de alienação de ativos e de proteção contra sucessão devem ser interpretadas teleologicamente, com vistas à preservação da empresa e a proteção dos interesses dos credores. Proteger-se o adquirente de ativos permite que se obtenha maior valor pela venda de ativos, o que é desejável e benéfico tanto para a recuperanda quanto para os credores. Interpretação diversa que reforce a dificuldade de se desinvestir vai na contramão dos objetivos da LRF. Assim, contanto que se demonstre que a alienação de ativos resulta em evidente utilidade para a promoção dos objetivos da Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial e Falência, - quais sejam preservar a empresa, maximizar o valor dos ativos do devedor e tutelar os credores -, deve-se reconhecer a não sucessão do adquirente de ativos na recuperação judicial, ainda que a alienação ocorra no início do processo, na forma do art. 66 da LRF. Essa é a interpretação que, a meu ver, melhor se coaduna com os objetivos do processo recuperacional.
Por Cássio Cavalli 24 jun., 2020
Assine a newsletter Agenda Recuperacional no site www.AgendaRecuperacional.com.br e no Linkedin para receber os próximos artigos do Prof. Cássio Cavalli. Por Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado, parecerista e árbitro. Desde o momento em que a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente que o planeta passa por uma pandemia, sabia-se que empresas e setores inteiros da economia seriam severamente impactados. Para enfrentar a crise e reduzir os danos, diversos países adotaram um protocolo de crise que inclui, dentre outras medidas, reformas da legislação de falência e recuperação de empresas para tornar os processos mais céleres e eficientes. Nesses pouco mais de três meses, alguns países chegaram a implementar duas ou até mais rodadas de reforma nas suas leis para lidar com a crise empresarial. Enquanto isso, o Brasil dormita em berço esplêndido, à semelhança de um navio que ruma silenciosamente na noite escura em direção ao iceberg que poderá leva-lo ao fundo do mar. As empresas brasileiras, desprovidas de coletes e botes salva-vidas que uma reforma da lei de recuperação de empresas representaria, assistem em câmera lenta ao agonizante cenário de inação do poder central. Algo deve ser feito. Não há opção. Todos sabem que a postura de avestruz não assegurará uma melhor proteção à crise que já chegou. Por que, então, não se reforma a lei de recuperação de empresas e falências? Dentre as muitas respostas desponta a própria incerteza do legislador ante o que deve ser feito. Leis de insolvência lidam com situações em que o cobertor é curto e todos os afetados lutam para puxá-lo para o seu lado. Qualquer movimento legislativo arrasta o cobertor mais para um lado e desperta a crítica do lado desfavorecido. O impasse só pode ser superado o com conhecimento assentado, obtido da experiência vivida, que desvele os raciocínios frequentemente contraintuitivos que permeiam a legislação concursal. Com isso, quero dizer que o poder Legislativo frequentemente aguarda a consolidação de soluções por meio da jurisprudência para somente após cristalizá-las em texto legislado. A tabelinha entre o poder Judiciário e o poder Legislativo, aliás, encontra-se na própria gênese do instituto da recuperação judicial de empresas. No século XIX, diversas disputas políticas levaram os Estados Unidos a um vazio legislativo em matéria falimentar, ao mesmo tempo em que grave crise econômica instaurou-se na indústria ferroviária, então a mais relevante do país. Caso fossem deixadas ao léu, a sofrerem execuções de seus diversos credores, as empresas ferroviárias teriam sido destroçadas, e os EUA voltariam a se deslocar de carroças. Ante a incerteza legislativa para lidar com a crise, o “sistema judicial era a única alternativa institucional óbvia”, registrou David Skeel em seu monumental Debt’s Dominion (Princeton University Press, 2004). Com efeito, ao “invés de recorrerem ao legislador [...], administradores e bancos de investimento de ferrovias em crise olharam para outra instituição governamental: as cortes. As cortes responderam e, na história do direito concursal norte-americano, isto fez toda a diferença.” Utilizando-se de ingredientes encontrados em regras de processo civil, - parte no que chamaríamos de penhora de empresa com adjudicação de rendimentos ( receiverships ) e parte no que denominaríamos concurso especial de credores em execução hipotecária ( foreclosure law ), - as cortes norte-americanas desempenharam uma das “mais extraordinárias danças da história” do direito e criaram o instituto dos equity receivership para proteger empresas e preservar valor de ativos do devedor. A cristalização em texto legislado só ocorreu na década de 1930, muitos anos após a consolidação das soluções criadas pela jurisprudência. Estas foram as instituições que, vertidas para o Bankruptcy Code de 1978, serviram de modelo para os Princípios e Diretrizes do Banco Mundial que influenciaram a Lei 11.101/2005. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que o instituto da recuperação judicial de empresas, tal qual legislado, nasceu da jurisprudência. E à jurisprudência deve seus desenvolvimentos. É consabido por todos os que atuam na área que a disciplina da recuperação de empresas foi imensamente aprimorada pela atuação dos tribunais brasileiros. Não à toa. O poder Judiciário é aquele que está mais próximo dos problemas suscitados pela crise empresarial e que tem melhor conhecimento para implementar soluções técnicas que, em conjunto, darão forma a um corpo de normas mais adequado a resolver situações de insolvência. Ao mesmo tempo, a crise econômica atual tem o avassalador potencial de devastar empresas, empregos e geração de tributos. A premência por soluções eficientes e criativas é inequívoca. No contexto da profunda crise econômica causada pela pandemia, é hora de o poder Judiciário novamente assumir a dianteira na construção de soluções institucionais necessárias para a proteção de nossas empresas e de nossa economia.
Por Cássio Cavalli 10 jun., 2020
Assine a newsletter Agenda Recuperacional no site www.AgendaRecuperacional.com.br e no Linkedin para receber os próximos artigos do Prof. Cássio Cavalli. Por Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado, parecerista e árbitro. A crise deflagrada pelo Coronavírus acarretou impactos humanitários, sanitários e econômicos sem precedentes na sociedade globalizada. Os desafios para a superação da crise são de proporções gigantescas, a começar pelo fato de que se apresenta perante a humanidade o Paradoxo da Pandemia , em que as medidas sanitárias de distanciamento social colidem com os imperativos econômicos de prover o mínimo às populações para que possam se isolar em quarentenas. Ou seja, de um lado, impor distanciamento social por meio de quarentenas constitui a forma mais eficiente para se achatar a curva de contaminados de modo a não sobrecarregar o sistema de saúde. De outro lado, para que milhões de pessoas economicamente vulneráveis possam se isolar, é imperativo que se lhes assegure o mínimo existencial, para que possam sobreviver enquanto contribuem para a supressão do vírus. Parece que a promoção de um objetivo prejudica o outro, e vice-versa. Mais do que isso, o Paradoxo da Pandemia não é estático, já que seus efeitos se distribuem no tempo: a contenção do vírus com medidas de quarentena podem acentuar a crise econômica sem precedentes, de modo que mesmo após a humanidade derrotar o vírus ainda terá que lutar com tragédias humanas e sociais de imensas proporções decorrentes dos danos causados ao tecido social pela pandemia. Por isso, temos que fazer as melhores escolhas, e rapidamente, para que possamos minimizar as perdas que a pandemia imporá à humanidade e ao nosso país. A primeira escolha, por imperativo moral e, no caso do Brasil, por imperativo constitucional, é colocar as pessoas em primeiro lugar . O primeiro desafio é identificar o que devemos fazer para que as pessoas humanas possam ser protegidas do flagelo do vírus e da calamidade da fome. Para que possam sobreviver à quarentena, as soluções envolvem programas de distribuição gratuita de renda mínima às populações vulneráveis, de distribuição de recursos como alimentos, medicamentos, e serviços essenciais como luz, água e comunicação. Na parcela da população vulnerável encontram-se milhões de profissionais autônomos que não estão ao abrigo de redes de proteção e cuja renda já foi dizimada pela estagnação econômica da pandemia. Essas soluções devem ser implementadas pelo estado, notadamente pelo governo central, e pela sociedade civil organizada nas empresas, associações e centros comunitários. Empresas devem fazer o máximo ao seu alcance para produzir e fornecer produtos necessários ao combate da pandemia, e fornecer alimentos e apoio financeiro a seus empregados e colaboradores. Se não fizermos isso, há risco real de ruptura do tecido social, com convulsões causadas pela fome e pelo medo cujas proporções são aterrorizantes. O tempo e o custo humano para reconstruir o país sem dúvida excederão qualquer esforço que se faça hoje para proteger nossos concidadãos. É consabido que aproximadamente 60 milhões de brasileiros estão superendividados e não possuem poupança para se sustentarem sem trabalho. Esse número tende a aumentar muito com a recessão econômica decorrente da pandemia. Assim, uma vez superado o vírus, milhões de brasileiros terão pela frente que se dedicar não a reconstruir o país, mas a limpar os destroços que restaram, sendo despejados de suas casas e tendo que encontrar onde morar e como fazer mudanças, empreendedores de pequeno porte tendo que fechar portas, desocupar lojas, devolver equipamentos, ao invés de retomarem suas atividades com rapidez para gerar bem-estar para si e para a sociedade. Esse trabalho, de proporções hercúleas, consumirá grande parte dos esforços de nossa população. Além disso, milhões de empreendedores reincorrerão em custos afundados para começar novos negócios, como por exemplo achar um local para se estabelecer, treinar funcionários e celebrar novos contratos. Para uma retomada econômica mais rápida, precisamos urgentemente proteger essa imensa parcela da população, por dois mecanismos distintos: (i) renda mínima e suporte material acima referidos, para que possam atravessar o período de isolamento social; e (ii) a adoção de regras de insolvência pessoal que permitam a liberação de dívidas . O Brasil não possui lei de insolvência de pessoas naturais não empresárias. Porém, o Brasil pode e deve se inspirar no exemplo dos Estados Unidos, que possui uma lei de insolvência que pode ser utilizada por empresas e por consumidores, e que desde meados da década de 1990 já é utilizado por mais de um milhão de pessoas físicas que enfrentam dificuldades financeiras. Este processo de insolvência pessoal funciona da seguinte forma: a pessoa superendividada preenche um formulário pedindo a um juiz que a libere de suas dívidas (discharge). Nesse formulário, a pessoa indica e entrega seus bens ao juiz (normalmente, não há, pois são pessoas pobres), diz que não possui meios de pagar suas dívidas, e o juiz, em aproximadamente duas semanas, dá uma ordem de liberação das dívidas dessas pessoas. A pessoa é devolvida ao mercado de crédito a consumo e ao empreendimento livre de dívidas. Há diversos fundamentos para a liberação de dívidas. Um deles, é de matiz judaico-cristã: há na Bíblia diversas passagens que relatam perdões de dívidas de populações pobres e escravizadas. Das diversas passagens em Mateus, 18, 23-34; em Levítico, 25, 8-13; e em Deuteronômio, 15, 1, 2 e 3; destaca-se a oração do Pai Nosso, em Mateus 6, 12, em uma das traduções atualmente adotada em países de língua inglesa, que registra: “Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.” Pode-se ler o registro bíblico como um registro ético profundamente insculpido nas sociedades humanas, segundo o qual dívidas que o devedor jamais conseguirá pagar não podem ser mantidas e devem ser perdoadas. Na linguagem bíblica, associa-se à existência de dívidas impagáveis à escravidão. Na perspectiva antropológica de David Graeber, na monumental obra Debt the first 5.000 years, o registro bíblico reflete a preocupação real de devedores cujos familiares eram escravizados por dívidas em patamares que se tornavam insuportáveis em tempos de crise decorrente de quebras de safra. Essa preocupação moral e ética, aliás, empresta fundamento às normas jurídicas que autorizam a extinção das obrigações em razão da impossibilidade superveniente de prestar. Isto é, se o devedor deve cumprir algo cuja execução se tornou impossível, a obrigação deixa de existir. A liberação de dívidas em processos de insolvência pessoal também encontra fundamento no utilitarismo, pois há um aumento de bem-estar da coletividade ao assegurar-se ao devedor um fresh start, isto é, um recomeço sem dívidas para as suas atividades de produção e de consumo. Aqui, manifesta-se em cheio o comunitarismo da filosofia utilitarista. De fato, não há porque deixarmos milhões de brasileiros enredados em teias de dívidas e de cadastros de maus pagadores por dívidas que jamais poderão ser pagas. Com isso, apenas excluímos do jogo econômico milhões de concidadãos que poderiam dedicar suas energias à produção de bem estar coletivo, ao invés de ficarem imobilizados com um nome sujo na praça que os torna párias sociais. Aqueles que hoje alugam um carro para dirigir para um aplicativo, com o nome sujo, não poderão mais fazê-lo. Assim como milhões de empreendedores individuais dos mais diversos setores da economia. É desejável e possível que sejam imediatamente adotadas leis de insolvência pessoal que assegurem a liberação de dívidas de brasileiros. Estas leis devem ser elaboradas de modo a que possamos proteger dois grandes sistemas da infraestrutura institucional brasileira: o sistema financeiro e o sistema judicial. Quanto ao sistema financeiro, a implementação do discharge deverá ser realizada em sincronia com ajustes da regulação bancária que permita aos bancos liberar as provisões de créditos de realização duvidosa e possam se beneficiar integralmente dos prejuízos fiscais daí decorrentes. Ademais, como recordou meu colega Bruno Salama, o Brasil já implementou um cadastro positivo de crédito, que era o pressuposto para adotarmos lei de insolvência pessoal. Já no que respeita ao sistema judicial, é imperativo que o procedimento judicial de liberação de dívidas seja simples e rápido, sem excesso de formalidades. Há formas de se implementar isso, inclusive pela adoção de procedimentos administrativos. Seria também possível evitar o congestionamento do Poder Judiciário adotando-se medidas como as descritas nas passagens da Bíblia acima referidas, com um perdão geral de dívidas em que todas as tábuas em que são registradas as dívidas são quebradas. Essa medida pode ser adotada setorialmente, mas não creio ser a mais adequada para os consumidores. A construção de um marco institucional que proteja contra as agruras do superendividamento pode significar um grande avanço civilizatório no Brasil que a trágica pandemia pode nos legar.
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